O HOMEM, A LUTA E A ETERNIDADE
Murilo Mendes 

Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!

Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.



A GATA RECOLHIDA
William Cowper

Grave como a um vate convinha,
A gata de um poeta, quietinha,
Dava-se ao vício de encontrar
Cantos nos quais poder ficar,
Segura igual na toca um rato,
E ali pensar em to pacato.
De onde lhe veio essa mania -
Não sei: ou a Natureza a enchia
De filosofia pedestre,
Ou ela a pegou de seu mestre.
Ora subia, bem lampeira,
Num pé de pêra ou macieira
E, na forquilha se instalando,
Via o jardineiro penando.
Ora buscava o refrigério
Num regador velho e vazio
Onde, se um leque ela empunhasse,
Seria dama de alta classe
Pronta num conche a melhor sorte
Para o transporte até a corte.
Mas a mudança contumaz
Não só à nossa raça apraz.
Também é forte entre os bichanos
Esta paixão que arrasta humanos.
A gata, ao ver que no relento
Subir a expunha a muito vento,
Achou a lata do utensílio
Um incômodo reduto frio:
Portanto quis, como variante,
Um lugar mais aconchegante,
Imunte ao frio, infenso ao ar
Que o pêlo poderia estragar,
E o foi buscar para um bom sono
Dentro da casa de seu dono.
Eis que por sorte um escaninho
Forrado do mais pura linho,
Desse trazido por mercantes
Da Índia ao rol das elegantes,
Uma gaveta aberta à frente
No alto da cômoda imponente,
Funda e com espaço para usar,
Intimou-a a lá cochilar;
Sem expressão, tal seu deleite,
Tomou-a a gata por aceite.
Logo espichada no bem-bom
Para ninar-se ao seu ronrom,
Dormia já que nem morrida,
Aheia aos problemas da vida,
Quando surgiu a arrumadeira
E fechou-a, ativa, à carreiras;
Não por maldade, e sim, se errava,
Por não saber quem lá trancava.
Desperta ao choque, esta dizia:
"Gata tratada assim havia?
Ora, a gaveta estava aberta
Só para eu ter morada certa,
Pois bastou eu me acomodar
Para a mocinha a vir fechar.
Que lenços finos! Oh, que incrível!
Que refúgio mais aprazível!
Vou baqui descansar resignada
Até o Sol em retirada
Chame ao jantar e ela então venha
Livrar-me ao certo dessa brenha".
Entardeceu, o Sol baixou
E a gata lá continuou.
Passando a noite lentamente
(E ela no escuro eternamente),
reavivou-se a manhã trêfega,
a tarde cinza fluiu sôfrega
E, qual se a tumba já a tragasse,
Ninguém notou que se ausentasse.
Com fome agora e ânsia de espaço,
Prevendo a gata alto embaraço,
Não mais roncava nem dormia,
Cônscia do risco que corria.
À noite o poeta, atento e sério,
Ouviu unhadas de mistério;
Inquieto o nobre coração,
perguntou-se ele: "O que serão?"
Pôs a cortina bem de lado
E nada viu de inusitado.
Porém, de orelha em pé, supôs
Alguém preso na cômoda a sós
E, incerto, quis por previdência
Ali deixá-lo em permanência.
Por fim um som habitual,
Um longo e taciturno miau,
Ouvido em seu lírico credo,
Consolou-o e espantou o medo:
Largada a cama, ei-lo que, inteiro,
Foi explorar o gaveteiro,
Abrindo embaixo e, ao mesmo escopo,
O resto em série até o topo.
Pois é verdade bem sabida
Que, quando a coisa está perdida,
Em toda parte a gente a sonda,
Menos cheia de si que outrora,
Já não tão tonta à apreensão
De chamar do mundo a atenção,
Mas modesta, sóbria, curada
Das hipérboles tiradas,
Pronta a ceitar qualquer lugar,
Que não gaveta, para estar.
Na volta ao leito o poeta então
Fez a seguinte reflexão:
 
MORAL
 
Cuidado com o sublime enlevo
De seu valor e seu relevo;
O homem que se julga o tal,
Dando-se importância total,
E acha que tudo, à volta, em cheio,
Se move e atua com ele ao meio,
Verá nas horas de aflição
A insensatez dessa expectação.


Tradução: Leonardo Fróes 


O MAU SAMARITANO
Murilo Mendes 

Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei. 


 
REFLEXÃO No. 1
Murilo Mendes 

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito. 


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.
SEM ESTRELA
Carlos Nejar

A morte ia comigo e eu, com ela.
E vi o seu ridículo vestido,
o andar desajeitado e sem sentido,
o rosto com penteado de donzela,

sendo tão velha, velha, no ruído
de suas meias e sapatos de heras.
Então não resisti e me ri dela,
caçoava de seus gestos confundidos.

E desta sisudez que nada espera,
mas sabe que na vida um só gemido
pode fazê-la emudecer. Insisto

em rir de sua passagem sem estrela,
sem grandeza nenhuma. E se resisto,
é porque está em mim quem vai vencê-la.

A ROCHA & A TAREFA

A ROCHA [Parte X]
T. S. Eliot

Viste a casa edificada e a contemplaste ornamentada
Por alguém que veio à noite, e a Deus agora se consagra.

Ergue-se agora uma igreja visível, uma luz a mais sobre as
[colinas
De um mundo caótico e obscuro, atormentado pelos pro-
[dígios do medo.
E que diremos no futuro? Que uma igreja foi tudo o que

[logramos construir?
Ou a Igreja Visível irá conquistar o mundo?

A grande serpente jaz sempre semi-alerta, no pélago
[abissal do mundo, enrodilhada

Em suas próprias espirais, até que esfomeada se desperte e

[mova sua cabeça de um para outro lado, à espera de sua

[hora para devorar.

Mas o Mistério da Iniquidade é um abismo tão profundo

[que os olhos mortais não podem perscrutar. Afastai-vos

Daqueles que adoram os olhos dourados da serpente,
Os idólatras, que a si próprio à serpente se imolam. Segui

Vosso caminho e ficai à parte.
Não sejais muito curiosos acerca do Bem e do Mal;
Não almejeis contar as ondas que o Tempo ainda haverá de
[propagar;
Contentai-vos de que haja luz bastante
Para que vosso passo seja dado e encontrado seja o solo

[onde apóia-lo.


Ó Luz Invisível, Te louvamos!

Por demais fulgurante aos olhos dos mortais.

Ó Luz Suprema, Te louvamos por toda luz menor;

Pela luz oriental que de manhã tangencia os campanários,

Pela luz que se debruça à tarde sobre nossas portas oci-

[dentais,

Pelo dilúculo sobre as poças estagnadas quando freme o

[morcego suas asas,

Pela luz do luar e das estrelas, da coruja e da falena,

Pela cintilante luz do pirilampo entre as lâminas da grama,

Ó Luz Invisível, Te adoramos!


Te agradecemos pelas luzes que acendemos,
Pela luz do altar e do sacrário;
Pelas luzes pequeninas dos que à meia-noite meditam

E as luzes que se filtram pelos vidros coloridos das janelas

E a luz que refletem os seixos cinzelados,
A pátina das madeiras entalhadas, a afresco multicor,

Nossa contemplação é submarina, nossos olhos sondam a

[superfície

E vêem a luz que se dispersa por entre as águas irrequietas.

Vemos a luz, mas não a fonte que a irradia.
Ó Luz Invisível, Te glorificamos!


Em nosso ritmo de vida sobre a terra a luz nos afadiga.

Alegremo-nos quando agoniza o dia, quando o jogo finda;

[e o êxtase por demais nos lancina,

Somos crianças prematuramente exaustas: crianças que

[ficam à noite acordadas e que o sono só trespassa quando

[o fogo do rojão se alastra; e o dia é longo para o trabalho

[ou para em folguedo passá-lo

Fadigam-nos a distração ou a concentração, dormimos
[sempre alegres por adormecermos,

Controlados pelo ritmo do sangue e do dia e da noite e das

[estações.
E devemos apagar o candeeiro, expurgar a luz e reacendê-la;

Devemos para sempre avivar e reacender a chama.

Te agradecemos pois por nossa luz exígua, marchetada de

[sombras.
Te agradecemos por havermos sido impelidos a edificar, a

[descobrir, a dar forma às pontas de nossos dedos e aos
[raios de nosso olhar.

E quando houvermos erguido um altar à Invisível Luz, pos-

[samos nós dispor sobre eles as pequeninas luzes para as

[quais nossa visão corpórea foi criada.

E Te agradecemos pelas trevas que nos recordam a luz.
Ó Luz Invisível, por tua grande glória Te rendemos graça!

Poesia - Editora Nova Fronteira
Tradução: Ivan Junqueira


A TAREFA
William Cowper

Eu era um cervo ferido, que deixou o bando
Faz muito tempo; Meu lado arquejante estava
carregado
Com muitas flechas profundamente cravadas,
quando me retirei
Para procurar uma morte tranquila em sombras
distantes.
Ali fui encontrado por alguém que tinha sido ferido,
ele mesmo,
pelos arqueiros. em seu lado ele carregava as
cicatrizes cruéis
Também nas suas mãos e em seus pés.
Com força gentil, tomando os dardos,
Arrancou-os, curou-me e me ordenou que vivesse.
Desde então, com uns poucos companheiros,
Em florestas remotas e silenciosas eu vago, longe
daqueles
Antigos companheiros de cenários populosos.
Com poucos parceiros e não querendo nada mais.


"O Sorriso Escondido de Deus" - John Piper - Ed. Shedd




SEGUNDO CONTO: LIVRO DA TERRA E DOS HOMENS [Fragmento 6]
Carlos Nejar

Os homens eram sombrios,
esfinges de solidão.

Os homens eram sombrios.
Quiseram tecer de sonhos
a água verde dos rios.

Os homens eram amargos.
Quiseram compor o cisne
nas águas verdes dos lagos.

Os homens eram ardentes
como tochas de amaranto.
Sobre o rosto do poente
deixaram rosas de pranto.

Eram terríveis, terríveis,
Contra o céu do esquecimento
lançavam gumes de fogo
e adormeciam no vento.

Os homens eram de veneto
(de um vento predestinado).

Braços de ferro no tempo
entre o presente e o passado.

Os homens eram ferozes
como estrelas de ambição.

Mas no tempo primavera,
se primavera chegasse,

eram brandos como espuma,
eram virgens como espada,
eram suaves, suaves
como aves de abandono.

Os homens eram de estrela
soprando sobre o canal.
Não era estrela de noite
mas estrela de metal.

Os homens eram de estrela
e não podiam sustê-la.

Os homens eram de treva,
fizeram-se escravos dela.

Os homens eram remotos
no grande túnel de pedra.

Nem alga nem alfazemas
nem junco nem girassol.

Floração ali não medra
longe da terra do sol

Floração ali não medra,
Todo que nasce é de pedra.

O homem nasceu do vento,
mas sepultou-se na pedra.

O tempo nasceu do homem,
mas o homem não é pedra.

O tempo formou-se pedra
na eternidade da pedra.

Um sol compreendeu o homem;
era fogoso e de pedra.

Menino não como os outros,
menino feito de pedra.

Braços, só braços e mãos
na madrugada de pedra.

Os homens donde vieram
com seu destino de pedra?
Que procuravam os homens
na eternidade de pedra?

Eram hálitos de aurora,
luz florescendo caverna?
Eram só pedra.

Talvez fonte, vento-vento,
folhagem sobre montanha,
cintilações, pensamento?
Eram só pedra.

Talvez crianças, relâmpagos,
paredes de som, cantigas?
Eram só pedra.

Rostos ocultos no sono,
barcos de ânsia, velame?
Eram só pedra.

Talvez carícia, sossego,
desejo de despertar?

Eram só pedra de pedra.
Os deuses eram de pedra,

os homens eram de pedra
na eternidade de pedra.

Pedra de aurora, mas pedra,
Os homens eram pedras.

Lábios de pedra, mas pedra.
Os homens eram pedras.

Ventre de pedra, mas pedra.
Os homens eram pedras.

Noite de pedra, mas pedra.
Os homens eram pedras,

os homens eram pedras.
Os homens eram pedras.

Eram as pedras, as pedras.
Eram as pedras.


Do livro "breve história do mundo". Ediouro



COM O TEMPO A SABEDORIA
W. B. Yeats


Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,

Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;

Agora posso murchar no coração da verdade.


(tradução: José Agostinho Baptista)



OS HOMENS OCOS [Parte 1]
T. S. Eliot

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussuramos,
São quietas e inexpressas
Como o vendo na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Fôrma sem forma, sombra sem cor,
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.


MANHÃ À JANELA
T. S. Eliot

Ha um tinir de louças de café
Nas cozinhas que os porões abrigam,
E ao longo das pisoteadas bordas da rua
Penso nas almas úmidas das domésticas
Brotando melancólicas nos portões das áreas de serviço.

As fulvas ondas da neblina me arremessam
Retorcidas faces do fundo da rua,
E arrancam de uma passante com saias enlameadas
Um sorriso sem destino que no ar vacila
E se dissipa rente ao nível dos telhados.



UM CÂNTICO PARA SIMEÃO
T. S. Eliot


Senhor, os jacintos romanos estão florindo nos vasos
E o sol do inverno resvala sobre as colinas de neve.
Rendeu-se a quadra obstinada.
Minha vida é luz, à espera do sopro da morte,
Tal uma pluma no dorso de minha mão.
A poeira entre os raios de sol e a memória nos cantos
Aguardam o vento que esfria rumo à terra morta.
Concede-nos tua paz.
Muitos anos caminhei nesta cidade,
Guardei fé e jejum, poupei para os pobres,
De e recebi honra e conforto.
Ninguém jamais de minha porta repeli.
Quem se recordará de minha casa, onde viverão os filhos de meus filhos
Quando vier o tempo do infortúnio?
Buscarão eles a trilha da cabra e a toca da raposa,
Esquivando-se às faces e às espadas forasteiras.
Antes do tempo das cordas e dos flagelos e dos lamentos
Concede-nos tua paz.
Antes das estações na montanha da desolação,
Antes da hora certa da aflição materna,
Agora, nesta quadra em que morte se avizinha,
Possa o Infante, o Verbo inexpresso e impronunciado ainda,
Conceder a consolação de Israel
A quem tem oitenta anos e nenhum amanhã
Conforme tua palavra.
Eles Te haverão de exaltar e de sofrer em cada geração
com glória e escárnio,
Luz sobre luz, galgando a escada dos santos.
Não para mim o martírio, o êxtase do pensamento e da prece,
Não para mim a última visão.Concede-me tua paz.
(E uma espada trespassará teu coração,
o teu também.)
Estou cansado de minha vida e da vida dos que virão depois de mim,
Estou morrendo de minha morte e da morte dos que virão depois de mim.
Deixa partir teu servo,
Após ter visto tua salvação.
Do livro “POESIA” - Edição Comemorativa - Editora Nova Fronteira


CETRO
Carlos Nejar

Tens de meu reino, o cetro.
Tudo o que me sucede
é futuro em tua rede.

Estás no princípio
e fim. Mais forte
que as coisas
que estão em mim.

Do livro “Todas as Fontes Estão em Ti”, Editora Eclesia