SEM ESTRELA
Carlos Nejar

A morte ia comigo e eu, com ela.
E vi o seu ridículo vestido,
o andar desajeitado e sem sentido,
o rosto com penteado de donzela,

sendo tão velha, velha, no ruído
de suas meias e sapatos de heras.
Então não resisti e me ri dela,
caçoava de seus gestos confundidos.

E desta sisudez que nada espera,
mas sabe que na vida um só gemido
pode fazê-la emudecer. Insisto

em rir de sua passagem sem estrela,
sem grandeza nenhuma. E se resisto,
é porque está em mim quem vai vencê-la.

A ROCHA & A TAREFA

A ROCHA [Parte X]
T. S. Eliot

Viste a casa edificada e a contemplaste ornamentada
Por alguém que veio à noite, e a Deus agora se consagra.

Ergue-se agora uma igreja visível, uma luz a mais sobre as
[colinas
De um mundo caótico e obscuro, atormentado pelos pro-
[dígios do medo.
E que diremos no futuro? Que uma igreja foi tudo o que

[logramos construir?
Ou a Igreja Visível irá conquistar o mundo?

A grande serpente jaz sempre semi-alerta, no pélago
[abissal do mundo, enrodilhada

Em suas próprias espirais, até que esfomeada se desperte e

[mova sua cabeça de um para outro lado, à espera de sua

[hora para devorar.

Mas o Mistério da Iniquidade é um abismo tão profundo

[que os olhos mortais não podem perscrutar. Afastai-vos

Daqueles que adoram os olhos dourados da serpente,
Os idólatras, que a si próprio à serpente se imolam. Segui

Vosso caminho e ficai à parte.
Não sejais muito curiosos acerca do Bem e do Mal;
Não almejeis contar as ondas que o Tempo ainda haverá de
[propagar;
Contentai-vos de que haja luz bastante
Para que vosso passo seja dado e encontrado seja o solo

[onde apóia-lo.


Ó Luz Invisível, Te louvamos!

Por demais fulgurante aos olhos dos mortais.

Ó Luz Suprema, Te louvamos por toda luz menor;

Pela luz oriental que de manhã tangencia os campanários,

Pela luz que se debruça à tarde sobre nossas portas oci-

[dentais,

Pelo dilúculo sobre as poças estagnadas quando freme o

[morcego suas asas,

Pela luz do luar e das estrelas, da coruja e da falena,

Pela cintilante luz do pirilampo entre as lâminas da grama,

Ó Luz Invisível, Te adoramos!


Te agradecemos pelas luzes que acendemos,
Pela luz do altar e do sacrário;
Pelas luzes pequeninas dos que à meia-noite meditam

E as luzes que se filtram pelos vidros coloridos das janelas

E a luz que refletem os seixos cinzelados,
A pátina das madeiras entalhadas, a afresco multicor,

Nossa contemplação é submarina, nossos olhos sondam a

[superfície

E vêem a luz que se dispersa por entre as águas irrequietas.

Vemos a luz, mas não a fonte que a irradia.
Ó Luz Invisível, Te glorificamos!


Em nosso ritmo de vida sobre a terra a luz nos afadiga.

Alegremo-nos quando agoniza o dia, quando o jogo finda;

[e o êxtase por demais nos lancina,

Somos crianças prematuramente exaustas: crianças que

[ficam à noite acordadas e que o sono só trespassa quando

[o fogo do rojão se alastra; e o dia é longo para o trabalho

[ou para em folguedo passá-lo

Fadigam-nos a distração ou a concentração, dormimos
[sempre alegres por adormecermos,

Controlados pelo ritmo do sangue e do dia e da noite e das

[estações.
E devemos apagar o candeeiro, expurgar a luz e reacendê-la;

Devemos para sempre avivar e reacender a chama.

Te agradecemos pois por nossa luz exígua, marchetada de

[sombras.
Te agradecemos por havermos sido impelidos a edificar, a

[descobrir, a dar forma às pontas de nossos dedos e aos
[raios de nosso olhar.

E quando houvermos erguido um altar à Invisível Luz, pos-

[samos nós dispor sobre eles as pequeninas luzes para as

[quais nossa visão corpórea foi criada.

E Te agradecemos pelas trevas que nos recordam a luz.
Ó Luz Invisível, por tua grande glória Te rendemos graça!

Poesia - Editora Nova Fronteira
Tradução: Ivan Junqueira


A TAREFA
William Cowper

Eu era um cervo ferido, que deixou o bando
Faz muito tempo; Meu lado arquejante estava
carregado
Com muitas flechas profundamente cravadas,
quando me retirei
Para procurar uma morte tranquila em sombras
distantes.
Ali fui encontrado por alguém que tinha sido ferido,
ele mesmo,
pelos arqueiros. em seu lado ele carregava as
cicatrizes cruéis
Também nas suas mãos e em seus pés.
Com força gentil, tomando os dardos,
Arrancou-os, curou-me e me ordenou que vivesse.
Desde então, com uns poucos companheiros,
Em florestas remotas e silenciosas eu vago, longe
daqueles
Antigos companheiros de cenários populosos.
Com poucos parceiros e não querendo nada mais.


"O Sorriso Escondido de Deus" - John Piper - Ed. Shedd




SEGUNDO CONTO: LIVRO DA TERRA E DOS HOMENS [Fragmento 6]
Carlos Nejar

Os homens eram sombrios,
esfinges de solidão.

Os homens eram sombrios.
Quiseram tecer de sonhos
a água verde dos rios.

Os homens eram amargos.
Quiseram compor o cisne
nas águas verdes dos lagos.

Os homens eram ardentes
como tochas de amaranto.
Sobre o rosto do poente
deixaram rosas de pranto.

Eram terríveis, terríveis,
Contra o céu do esquecimento
lançavam gumes de fogo
e adormeciam no vento.

Os homens eram de veneto
(de um vento predestinado).

Braços de ferro no tempo
entre o presente e o passado.

Os homens eram ferozes
como estrelas de ambição.

Mas no tempo primavera,
se primavera chegasse,

eram brandos como espuma,
eram virgens como espada,
eram suaves, suaves
como aves de abandono.

Os homens eram de estrela
soprando sobre o canal.
Não era estrela de noite
mas estrela de metal.

Os homens eram de estrela
e não podiam sustê-la.

Os homens eram de treva,
fizeram-se escravos dela.

Os homens eram remotos
no grande túnel de pedra.

Nem alga nem alfazemas
nem junco nem girassol.

Floração ali não medra
longe da terra do sol

Floração ali não medra,
Todo que nasce é de pedra.

O homem nasceu do vento,
mas sepultou-se na pedra.

O tempo nasceu do homem,
mas o homem não é pedra.

O tempo formou-se pedra
na eternidade da pedra.

Um sol compreendeu o homem;
era fogoso e de pedra.

Menino não como os outros,
menino feito de pedra.

Braços, só braços e mãos
na madrugada de pedra.

Os homens donde vieram
com seu destino de pedra?
Que procuravam os homens
na eternidade de pedra?

Eram hálitos de aurora,
luz florescendo caverna?
Eram só pedra.

Talvez fonte, vento-vento,
folhagem sobre montanha,
cintilações, pensamento?
Eram só pedra.

Talvez crianças, relâmpagos,
paredes de som, cantigas?
Eram só pedra.

Rostos ocultos no sono,
barcos de ânsia, velame?
Eram só pedra.

Talvez carícia, sossego,
desejo de despertar?

Eram só pedra de pedra.
Os deuses eram de pedra,

os homens eram de pedra
na eternidade de pedra.

Pedra de aurora, mas pedra,
Os homens eram pedras.

Lábios de pedra, mas pedra.
Os homens eram pedras.

Ventre de pedra, mas pedra.
Os homens eram pedras.

Noite de pedra, mas pedra.
Os homens eram pedras,

os homens eram pedras.
Os homens eram pedras.

Eram as pedras, as pedras.
Eram as pedras.


Do livro "breve história do mundo". Ediouro